A Ditadura Militar brasileira, 45 anos depois do golpe de 1964 (parte 2)

(III)

A oposição parte para a luta armada

 

O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê tel evisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério cobrindo o país, o estômago fica pesado demais.

Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o regime. Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez. Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma notícia que desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time do Internacional de Porto Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal não podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política nacional e, de repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os espertos sacavam logo que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou conveniência, chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de farinha de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de chá de suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim, hehehe. Claro que existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como: “naquele tempo o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham elogios para o governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.”

Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha até à cadeia. Estudantes e professor es que conversassem sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que você está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa...

_ O que você acha da situação atual?

_ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To fora!

Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de pertencer ao SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas amizades! O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi o caso, por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974 porque fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o ditador chileno Pinochet em visita ao Brasil , o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí: numa ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão enjaulados, mas a corrupção está livre.

Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para muitos jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada. Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a grande arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam. Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No Vietnã, os guerrilheiros de Ho Chi (Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo norte-americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e conquistaram a independência do país. Na própria China, a revolução socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa comandada por Mao Tsetung. No Brasil não poderia ser diferente: muitos estudantes, velhos militantes da esquerda e in tel ectuais começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5 não havia mais espaço para a legalidade. Só a luta armada libertaria o Brasil.

Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada. Os comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem socialismo nem reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário. Sua estratégia era a de se unir a todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino, no MDB. Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos revolucionários. ..). A juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, e  ainda, estudantes , intelectuais, operários e camponeses, que foram a luta armada. Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido companheiro de guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista: meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área rural. Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham a confiança através do trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o camponês jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o tratam com cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado, que os camponeses precisam se unir e se armar. E quando chegam os jagunços do fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo de armas de guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que aderem ao movimento, eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois, quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por sua vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas, ações rápidas e fulminantes. Depois,  a fuga veloz: sua mobilidade e ataques de surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos moradores. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um dia esses focos começariam a se unir para compor um grande exército popular. Tal como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria vitoriosa.

Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas. Os simpatizantes, que eventualmente podiam esconder alguém em casa ou contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos. Apesar de sonharem com a revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes geralmente eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava contra a luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo leitor, com 17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na faculdade. A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no campo. Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo.  A repressão do governo agia com muita eficácia e em alguns anos os grupos foram desman tel ados. No final, tinham de assaltar bancos para levantar fundos para a luta e seqüestrar embaixadores em troca da libertação de presos políticos.

A  tentativa que teve mais consistência foi a Guerrilha do Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974, organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do PCB (que era de linha soviética e contra a luta armada) o PC do B seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha. Pois bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do Sudeste e multinacionais investiram em pecuária extensiva na região do Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de camponesesposseiros (não tinham documentos legais da propriedade da terra, apesar de trabalharem nelas havia muitos anos). Nem quiseram saber, passaram a fazer grilagem das terras (tomar ilegalmente) . Quando o camponês não queria abandonar a terra, os capangas da empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a plantação, espancavam os moradores. Como você pode perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os posseiros eram muito fortes. O PC do B quis aproveitar esse  potencial de revolta e chegou na região para montar uma base de treinamento. Foram descobertos pelo Exército, que deslocou para região milhares de soldados. Contra uns 60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada, as pessoas só sabiam alguma coisa através de boatos. Mas na região do Araguaia até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu. Muitos militares abusaram do poder e espancaram brutalmente a população para que revelasse os esconderijos dos guerrilheiros. Os prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a morte depois que o corpo virou uma massa de pedaços de carne e sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a guerrilha do Araguaia estava destruída.

O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem de classe média, para combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados pelo governo. Além disso,  seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir como deve ser combatida?

 

Repressão e Tortura

Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem.

Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver escondido na cintura, olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido. Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas, debaixo de paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a face mais negra do regime. A tortura. Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens castrados. A lista de atrocidades é infindável. Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz. Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando, com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado para um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar com a repressão. Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado. O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio com a polícia”.

Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue. Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais sob o jugo das botas da tirania.

Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao contrário do que se possa pensar, a tortura não era feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo. Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quar tel do Exército! Como também aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou a guerrilha com brutalidade.

Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura. Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no aparelho repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e autorizavam a continuação da tortura.

Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas Forças Armadas e que foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco dos réus.

A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma propaganda ideológica massacrante. Numa época em que todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento e progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.” Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”, “agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia! O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo, aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas (pela primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela tel evisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava: “Todos juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia, com JK e Jango). O prefeito de São Paulo , Paulo (que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um automóvel zero quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os torturadores chutavam os presos. Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974. Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-o ou Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na verdade. Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o tempo do “milagre econômico”.

 

Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974)

 

 

Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do AI-5. um derrame o matou, em agosto de 1969. O povo não teve tempo de se alegrar; uma Junta Militar, comandada pelo general Lyra Tavares, assumiu o governo até se nomear o novo general-presidente. 0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo (ex-UDN), não tinha apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para escanteio. No mesmo ano, ocorreu a Emenda Constitucional nº 1, que alguns juristas consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o arbítrio e os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas arbitrárias tipo AI-5 e 477 foram incorporadas à Constituição. Além disso, ela estabeleceu que o presidente podia baixar medidas (decretos-leis) que valeriam imediatamente. 0 Congresso disporia de 60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias para votar a aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o Congresso poderia, por exemplo, estar fechado pelo AI-5, ou com número insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria automaticamente aprovado por decurso de prazo.

Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo presidente era o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo teve dois pontos de destaque: o extermínio  da guerrilha e o crescimento econômico espetacular (o “milagre”). Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se torturou e assassinou tanto. Nos porões do regime, as pessoas tinham suas vidas postas na marca do pênalti. E assim os órgãos de re-pressão marcaram gols, liquidando guerrilheiros como Marighella (4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca (17/09/71).

 Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico. A produção crescia e se modernizava num ritmo espetacular. A inflação, dentro dos padrões brasileiros, até que era moderada, lá na casa dos vinte e tantos por cento. Construía-se com euforia. Obras, como a ponte Rio-Niterói, a rodovia Transamazônica, a refinaria de Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972), pareciam mostrar que a prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações na Bolsa de Val ores e imaginava se tornar grande capitalista. Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou criaram-se novas, principalmente na produção de aço, petróleo, eletricidade, estradas, mineração e tel ecomunicações. Os nomes delas você já ouviu falar: Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás, Correios, Val e do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Usiminas e tantos outros. Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes trabalhadoras. Pelo contrário, quanto mais o país crescia, tanto mais piorava a vida do povo. Em 1969, por exemplo, o salário mínimo só valia 42% do que representava em 1959, Em 1974, isso desceu para 36%. Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres, A ditadura foi uma espécie de Robin Hood às avessas. Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que não havia nenhuma greve, nem sindicato independente, nem a oposição no Congresso tinha margem de manobra. Era uma ditadura que fazia uma coisa incrível: o país crescia como poucos no mundo e quanto mais riquezas eram produzidas, mais difícil ficava a vida dos trabalhadores.

E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao povo miserável que "está tudo bem"...

Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía. Nas grandes cidades brasileiras ela crescia, Quanto mais a renda per capita do Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque comiam pouco, não eram vacinadas, não tinham médico, De repente, houve uma epidemia de meningite, Doença que pode matar, É preciso que os pais estejam alerta. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem qualquer notícia a respeito. O povo tinha de ser enganado pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava sob controle, o que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da doença, não davam muita importância para aquela febrezinha do filho, Achavam que era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde, Até que a criança morria, A meningite mataria milhares de meninos e meninas no Brasil, numa das mais terríveis epidemias do século, Só esse caso já mostra o quanto a ditadura era absurda, não é mesmo?

O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência: “temos de esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”. E até hoje o povão está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o general-presidente Médici dizia: “A economia vai bem, só o povo é que vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é que ia mal, um trocinho assim, sem importância, uma poeirinha desprezível chamada povo... Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a ditadura, além de modernizar a indústria de base, estimulou a de bens de consumo duráveis. Maravilha das maravilhas: a família de classe média se realizava existencialmente comprando tevê em cores (desde 1972), aparelhagens de som, automóveis, eletrodomésticos. E até a classe operária foi arrastada nesse processo de crença na ascensão social baseada na aquisição do radinho de pilha ou do tênis maneiro,

A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos eram compridos e as barras das calças eram “boca-de-sino” , as obras eram gigantescas, o governo fazia estádios de futebol em tudo quanto era canto, mas as escolas caíam aos pedaços, A rodovia Transamazônica, importante para iniciar a colonização da Amazônia, não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios, aos camponeses e aos garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi realmente funda mental para ligar a economia do Nordeste do país ao Sudeste industrial (RJ e SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente teria sido mais barata se as contas tivessem sido controladas democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem fazendo essa obra encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas obras faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase inúteis, tal como as antigas pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens do governo e firmas de engenharia civil ganharem uma boa grana por fora. Velha história: sem democracia a roubalheira rola solta porque não há imprensa livre, Congresso independente.

Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais (estrangeiras) . Elas tiveram mais favores do governo do que as empresas nacionais! O que não é de se espantar, pois grande parte dos homens do poder eram profundamente ligados aos grupos estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Ana listas como Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen (que o presidente Collor queria para seu ministro), Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros como “notórios entreguistas” , ou seja, responsáveis conscientes pelo favorecimento escancarado do governo aos monopólios estrangeiros, É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total às multinacionais. Afinal, com a internacionalizaçã o da economia, ou seja, a ligação econômica direta entre quase todos os países e continentes, elas se tornaram peças fundamentais da economia mundial. Inclusive, porque parecem realmente ser úteis parceiras em alguns setores, já que nenhum país pode ter sozinho tecnologia e capital para produzir tudo. Todavia, é sensato esclarecer alguns pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida externa brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado aos banqueiros internacionais para fazer obras gigantescas a favor das multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que elas mandem para fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui reinvestir? Será interessante o seu poder de levar à falência as empresas nacionais, através de uma concorrência desleal? Será que elas realmente nos transferem tecnologia ou só mandam pacotes prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam dinheiro escondido "por debaixo do pano"? Será que não interferem na nossa vida interna, combatendo governos que não lhes interessam, mesmo se estes forem a favor do povo? Será saudável que produzam aqui remédios e produtos químicos proibidos em seus países de origem? Por que será que um operário da Volkswagen ou da Ford no Brasil faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de tecnologia, que operários dessas empresas na Alemanha ou nos EUA e, no entanto, ganha tão menos? Tantas perguntas...

Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento acelerado, inflação moderada, facilidades para o investimento estrangeiro, e também ricos mais ricos e pobres mais pobres e aumento da dívida externa. Você reparou que era um esquema parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O desenvolvimento espetacular das tel ecomunicações e da indústria de bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, prédios de luxo e mansões financiados pelo BNH) eram voltados principalmente para a classe média e superior. Milhões de brasileiros estavam meia por fora desse mercado. Claro, portanto, que essa festa não iria durar muito. 0 modelo se esgotava e a crise chegava mais rápido do que o Émerson Fittipaldi.

Governo do General Ernesto Geisel ( 1974 – 1979 )

O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num momento difícil da economia do Brasil e do mundo, Para alimentar o crescimento, ele pediu emprestado aos banqueiros estrangeiros e tratou de emitir papel-moeda. A inflação começou a aumentar e a engolir salários. Era o fim do “milagre econômico”. Agora, a insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de votos do MDB. Geisel percebeu que a ditadura estava chegando ao fim de sua vida útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob controle. Com ele, começaria a “distensão lenta e gradual”.

O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista mundial. Parecida com a de 1929, mas com efeitos bem menores para os países capitalistas desenvolvidos, que empurraram a crise para cima do Terceiro Mundo. De certa forma, os apertos econômicos dos países subdesenvolvidos, nos anos 90, foram continuação do processo de 1973. Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços do petróleo: Conversa fiada. O aumento foi apenas a recuperação de preços, que vinham caindo muito, desde os anos 50. Para você ter uma idéia, antes do aumento imposto pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o preço do barril de petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral! Claro que o aumento dos preços pegou todo mundo de surpresa, aumentou os custos, cortou os lucros, provocando inflação e desemprego. A crise do petróleo reforçou a crise geral do capitalismo em 1973. Mas com certeza a crise não foi só energética. Afinal, países exportadores de petróleo também entraram em crise! O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de mercadorias, tal como ocorrera em 1929. Depois da Segunda Guerra, os EUA representavam metade da produção econômica mundial. Mas nos anos seguintes a Europa Ocidental recuperou plenamente sua economia. Surgiu também um grande competidor, o Japão. De repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar investindo capital nos mesmos ritmos. As mercadorias começaram a ficar encalhadas e logo vieram as falências, a inflação, a recessão. Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise era mundial. Certo. Mas por que aqui ela era tão devastadora? Porque a política econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não representava nem 25% das nossas importações em 1975. Além disso, não só aumentou nossa produção interna, como seus preços internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a crise foi aumentando, ano após ano. Uma coisa tão braba que o nosso jovem leitor com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise econômica brasileira.

O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no pequeno mercado interno, representado pelos ricos e pela classe média. O país estava se transformando na Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia: uma quantidade razoável de pessoas (classe média e superior) com padrão de consumo de país desenvolvido, vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros, ou seja, a parte do Brasil parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria (classe média baixa e classes inferiores) com

padrão de vida muito baixo, milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se alcançado um estágio em que não dava para aumentar a produção, por falta de consumidores aqui dentro. A Bélgica da Belíndia era pequena e a Índia da Belíndia era cada vez maior. Como produzir mais automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para comprá-los? Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor: distribuindo renda. Para isso, seria preciso tocar em privilégios, mexer em interesses poderosos. Então , o regime militar não faria nada disso.

O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em recessão, isto é, para a economia não regredir, o Estado começou a tomar empréstimos externos para financiar a produção. Supunham que a economia cresceria, que as exportaÇões se tornariam espetaculares e que tudo isso daria condições de pagar a dívida externa. Só que os banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram dinheiro porque sabiam que o Brasil teria de devolver muito mais em forma de juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que nos anos 70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu emprestado! Ou seja, já pagamos tudo, continuamos pagando e ficamos devendo mais ainda! A dívida externa funciona como uma bomba de sucção que chupa os recursos da economia do Brasil. Aliás, o problema da dívida externa é comum em todo o Terceiro Mundo. Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80 foram drenados bilhões de dólares do Terceiro Mundo para o Primeiro. Ou seja, a parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que mandou dinheiro para a parte milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse esquema continua. O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida externa brasileira foi contraída financiando a vinda de multinacionais, construindo obras gigantescas só para favorecer empresas estrangeiras (estradas, hidrelétricas) , sem falar construções que o governo nunca terminou, deixando as máquinas e o material serem destruídos pelo tempo. Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele, é fácil. É só fabricar, emitir papel-moeda. Aí, vem a inflação. Para evitar a inundação de dinheiro, o governo criou mercados abertos (opens markets), vendendo títulos, ou seja, papéis expedidos com a garantia do governo, que mais tarde poderiam ser resgatados (o proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por um valor superior. A idéia era "enxugar" o mercado, mas a medida deu a maior força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer dizer, os empresários manobravam para negociar esses títulos com altos lucros. Eis aí um dos grandes problemas da economia brasileira a partir dali: a especulação financeira. Ela é um ganho artificial, já que não envolve nenhum investimento produtivo. No fundo, está transferindo riqueza da sociedade para o bolso de alguns espertinhos. A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os empresários não tinham conversa: buscaram lucrar na marra, botando os preços lá em cima. Ora, é impossível que os empresários, como um todo, possam lucrar na base do simples aumento de preços. Quando alguém aumenta os preços, o outro aumenta também para compensar. Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda com os aumentos gerais de preços. Os empresários aumentam os salários e, em seguida, sobem mais ainda os preços para reparar as perdas com a alfa de preços e salários. Vira um círculo vicioso. Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor. Espiral inflacionária. E o pior é que geralmente os preços crescem mais rápido do que os salários. Portanto, quem mais perde com a inflação são os trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a passo de cágado.

O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando Geisel. Família unida é ditadura unida. Sua presidência ocorreu dentro desse panorama de crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao luxo de ter um ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em Brasília, segundo o Jornal do Brasil, consumia, mensalmente, 954 kg de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma tonelada de bifes por mês, como devia ser gordo o ministro do Trabalho! Bem, com certeza os salários dos trabalhadores não eram tão gordos.

No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo na bacia de Campos (RJ), em frente à cidade de Macaé. A Petrobrás pôde aumentar sua produção espetacularmente. Mas Geisel tinha também outros planos para resolver o problema energético: como não havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar mais dinheiro ainda. O acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de bilhões de dólares. Para fazer usinas perigosíssimas num país onde 80% do potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina de Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros industriais do país: São Paulo e Rio de Janeiro. Imagine se houvesse um acidente nuclear!

Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa. Geisel montou um acordo nuclear com a Alemanha porque acreditava que o Brasil precisava aprender a dominar a tecnologia capaz de produzir, num futuro próximo, a bomba atômica. Na mesma época, a Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976, também sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou tomando uns cogumelos não exatamente nucleares, não é verdade?

No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era substituir a gasolina pelo álcool combustível. Os usineiros se alegraram. As plantações de cana-de-açúcar foram ocupando tudo quanto é lugar, expulsando os camponeses moradores, acabando com as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara) e despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do preço mundial de petróleo, o Brasil ficou com uma enorme frota de carros movidos a um combustível caríssimo. Já em 1990, querendo melhores preços, os usineiros '`sumiriam" com o álcool. Na verdade, o álcool se revelou um combustível muito mais caro do que a gasolina (no posto, o álcool é mais barato porque é subsidiado, ou seja, o governo paga uma parte da conta. Mas onde arruma dinheiro para fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em miúdos: quem tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque de quem tem carro a álcool). O que se viu nesses anos todos foi o governo emprestando milhões de dólares aos usineiros do Nordeste, do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois perdoando as dívidas porque não suporta mais a choradeira dos produtores de álcool e açúcar. Enquanto isso, os cortadores de cana continuam passando fome.

Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem mais baratos, podendo, em alguns casos, usar energia elétrica? Não foi incompetência. Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas dorsais de nossa indústria é fabricação de automóveis e caminhões. As pressões das multinacionais desse setor forçaram o governo a abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro, tão importantes nos países desenvolvidos, foram relegadas a segundo plano pelo governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos cortados.

O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi no governo Médici, sob a batuta do ministro Delfim Netto -, comandado pelo ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e pelo do Planejamento, Reis Velloso, tinha como objetivo começar a substituir as importações de bens de capital (indústria de base). Para isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do setor, mas principalmente as empresas estatais tiveram grande crescimento, especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional Light and Power e levou adiante a construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira com o Paraguai), a Embra tel ( tel efones, satélites de comunicações, tel evisão etc.), a Petrobrás e as estatais de aço. Tudo isso alimentado por uma dívida externa que aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida e os juros. Aí, a economia sentiria a fona de sucção dos interesses internacionais.

“Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo à democracia”

Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para deputado federal e estadual e para o Senado, em 1974 e 1978, o MDB teve ótima votação. Um aviso claro para o pessoal da ditadura se mancar. O povo estava dizendo não ao regime.

No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns achavam que a ditadura deveria ir afrouxando, acabando de modo lento e controlado. Talvez, para os ditadores saírem discretamente pelos fundos, sem ninguém correr atrás deles. Esses generais moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade democrática eram chamados de cas tel istas, porque se sentiam continuadores de Cas tel lo Branco. Era o caso do próprio Geisel e do presidente seguinte, Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses eram civis -, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por exemplo, tinham sido de linha dura. Começou então um combate nos bastidores, entre os militares cas tel istas e os linha dura. E os linha dura bem que pegaram pesado.

Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de tel ejornalismo da TV Cultura de São Paulo , foi chamado para um interrogatório num quar tel do Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou, preso e incomunicável. Dias depois, a família recebeu a notícia de que ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria de ser enterrado em um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava arrebentado pela tortura? No ano seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino. A farsa era evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por espancamento. Em homenagem a Herzog , o cardeal de São Paulo , D. Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James Wright e ao rabino Henri Sobel, dirigiu um culto religioso ecumênico (reunindo as religiões) em frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que foi a primeira manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a sociedade civil estava voltando para as ruas para protestar contra o arbítrio.

Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas exonerou o comandante do II Exército, responsável pelos acontecimentos. Deixava claro que não admitiria os atos violentos da linha dura. Em 1978, o Poder Judiciário daria ganho de causa à família de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos. Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia. Um trágico exemplo disso foi o massacre da Lapa, quando agentes do Exército invadiram uma casa nesse bairro da capital paulista, em 1976, onde se realizava uma reunião secreta de dirigentes do PC do B. As pessoas nem puderam esboçar reação: foram exterminadas ali mesmo, covardemente. Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso, teve de usar a habilidade para derrubar seus opositores de linha dura. A balança pendeu para o seu lado quando ele, num gesto fulminante, exonerou o general Sílvio Frota (1977), ministro do Exército, tido como de extrema direita e ligado à tortura.

A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar. Alguns militares eram favoráveis à distensão política porque realmente estavam imbuídos de convicções democráticas. Outros, não tão liberais, avaliavam que as Forças Armadas estavam começando a se desgastar ao se manter num governo que enfrentava uma crise econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão lenta e gradual. Ou seja, abrir o regime bem devagarzinho e sem perder o comando sobre ele. Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as vitórias eleitorais do MDB. Para isso, mudou as regras das eleições. Seu ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso pela in tel igente proibição da transmissão, pela tevê, do balé Bolshoi de Moscou (bailarinos são presa fácil do comunismo?), inventou a tal Lei Falcão (1976), que dizia que a propaganda política na tevê só podia exibir uma foto 3X4 do candidato e seu currículo, lido por um locutor. Nada de um candidato do MDB aparecer na tel inha ou no rádio para criticar o governo e fazer propostas novas.

O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um presentinho para os brasileiros, o Pacotão de Abril. Lindas surpresas. Para começar, a cada eleição a Arena perdia mais deputados para o MDB. Em breve, o partido do governo não teria os 2/3 do Congresso necessários para mudar alguma coisa da Constituição. Então, o Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser modificada com apenas 50% dos votos dos congressistas mais um. Assim, a Arena (ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB também ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço dos senadores passariam a ser biônicos, ou seja, escolhidos indiretamente pelas Assembléias Legislativas de cada Estado. Em outras palavras, a Arena já tinha garantido quase 1/3 do senado, os outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados do Nordeste, onde a população rural ainda era dominada pelos currais eleitorais, e portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o direito de eleger um número maior de deputados para o Congresso. No sertão nordestino, chuva mesmo, só de deputados da Arena. O Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o dono da bola joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz.

Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa vontade de Geisel com a distensão política, Mas antes de ele acabar com o ato arbitrário, usou o AI-5 para cassar diversos opositores. Mais ou menos como o pistoleiro que mata todo mundo e que, depois de acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez. A garantia disso. tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava sendo mantida.

Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo responsável: restabeleceu relações com países comunistas como a China, porque isso trazia vantagem comercial e diplomática. Em 1975, na África, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram de ser colônias de Portugal. No poder, partidos de orientação marxista, apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o governo militar ainda seguia a visão da Doutrina de Segurança Nacional que sonhava em transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do Sul e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os governos de esquerda em Angola e Moçambique , inclusive contrariando a vontade do governo racista da África do Sul e dos EUA. Na verdade, os EUA, do presidente Carter, andaram pressionando o governo militar brasileiro por causa da violação de direitos humanos (incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de americanos: apoiaram o golpe de 64, depois mudaram de governo e passaram a criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil – Alemanha, Geisel acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso mostra uma coisa muito importante: apesar de o regime militar brasileiro ter sido apoiado pelos EUA, tinha os olhos voltados para outros imperialismos, como o alemão, inglês, etc.

No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general Figueiredo. A crise continuava e as pressões populares pelas mudanças, também.

Bibliografia:

História do Brasil – Luiz Koshiba – Ed. Atual

História Crítica do Brasil – Mário Schmidt – Ed. Novos Tempos

História do Brasil – Boris Fausto – Ed. Difel

 

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Fonte: Cultura Brasil

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publicado por Rojo às 02:03